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Médicos usam Telegram e Google Forms para receitar, de graça, ivermectina e cloroquina

Grupos pró-"tratamento precoce" têm dezenas de milhares de usuários e funcionam livremente. Pacientes são recrutados por startup obscura de saúde

Médicos usam Telegram e Google Forms para receitar, de graça, ivermectina e cloroquina
Arte: Rodolfo Almeida

“Bom dia, alguém sabe dosagem correta de cloroquina pra quem tem problemas de pressão alta e diabetes?"

Perguntas como essas são enviadas e respondidas todos os dias em grupos no Telegram, onde milhares de partidários do chamado “tratamento precoce” compartilham contatos e conversam com médicos dispostos a receitar o “tratamento”, além de trocarem dicas sobre como evitar a vacinação contra Covid-19.


É importante porque...

Pressionados pela opinião pública e, em alguns casos, pela Justiça, Google e Facebook começaram a derrubar conteúdos desinformativos sobre Covid em suas redes. Então médicos, pacientes e lobistas do tratamento precoce, bem como agitadores políticos, encontraram no Telegram uma espécie de refúgio sem moderação.

O movimento é parecido com o que fez a extrema-direita, que viu no aplicativo russo uma rota de fuga para políticos radicais e apoiadores que sofreram sanções em outras plataformas digitais.

A migração começou em fevereiro e se intensificou em abril de 2021. Hoje dá para encontrar grupos com dezenas de milhares de usuários, que funcionam sem incômodo algum, como, por exemplo, o “Tratamento preventivo temprano” com mais de  22 mil membros.

O grupo foi criado e gerido por Graciela Schorr, tecnóloga em gestão financeira, administradora e proprietária de uma pequena pensão em Imbituba, Santa Catarina. O grupo começou do zero, em meados de março de 2021, e engordou a partir da migração de grupos de WhatsApp que discutiam ivermectina.

Graciela não tem formação na área da saúde. No entanto, ela se identifica como responsável pela maior parte dos conteúdos do canal que falam sobre Covid, vacinas, uso de medicamentos off label etc.

Procurada pela reportagem, Graciela se recusou a dar entrevista. Em um dos posts, ela descreve o conteúdo do Tratamento preventivo temprano como “salvador de vidas”.

Em outra publicação, ela indica explicitamente remédios para uma pessoa que diz estar tomando dexametasona, um corticoide. Não é a única ocasião em que ela responde a um pedido de ajuda ou indicação de remédio no canal.

Outro grupo, o “Tratamento Preventivo Br”, com 9 mil usuários, tem uma trajetória um pouco diferente da mobilização mais discreta e orgânica de Graciela Schorr. Ele foi lançado em fevereiro de 2021 pela Frente Conservadora de Goiânia, que usou o Telegram como parte da estrutura de comunicação do grupo para disseminar o tratamento precoce.

O responsável direto pelo site e pelo canal é Jeniffer Roni Crecci, presidente da Frente Conservadora de Goiás. Apesar de gerir e orientar pessoas que discutem conteúdos de saúde, Jennifer também não tem qualificação na área. Ele se apresenta no seu Instagram como Bacharel em Teologia, Pastor e Capelão.

Em seu canal, há mensagens que ensinam "evitar legalmente a vacinação" e disseminação de informações falsas sobre remédios específicos a serem tomados durante o "tratamento precoce". Há inclusive orientações sobre “protocolos” perigosos como a nebulização de hidroxicloroquina, um procedimento que foi restrito pelo Conselho Federal de Medicina desde 12 de maio de 2021.

O CFM considerou o uso por inalação somente como experimental, após o procedimento ter sido utilizado como tentativa (sem sucesso) de reduzir o risco de eventos adversos e aumentar eficácia no tratamento contra a covid-19.

Recrutamento de pacientes via Google Forms

Chama a atenção em ambos os grupos a disseminação de um formulário para quem tem interesse em ter acesso gratuito ao "tratamento precoce", oferecido pelo grupo "Médicos Voluntários do Brasil".

É uma lista de perguntas excruciante (cerca de 50 perguntas) e detalhada. Para se ter uma ideia de sua dimensão e do nível de dados pessoais solicitados, clique abaixo.

Itens do formulário

medicos-voluntarios

Reprodução de tela de Google Forms mantido pelo grupo "Médicos Voluntários do Brasil". Data do print: 28/07/2021. Acesse neste link as reproduções de tela em PDF do formulário.

Após preencher o formulário com dados pessoais e médicos, é solicitado que o interessado assine dois “termos de consentimento” no próprio sistema do Google antes de acessar a área que apresenta os médicos. Um diz respeito especificamente à hidroxicloroquina e outro termo diz respeito a um conjunto de remédios experimentais.

De acordo com o professor Bruno Caramelli, da USP, esses documentos não têm nenhuma validade, pois um termo de consentimento deve ser aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep.

Caso contrário, o nome disso é coação. “Não adianta fazer um acordo cheio de palavras que o paciente não entende. Você pega um paciente desesperado e coloca um papel na frente dele que diz que ele vai tomar qualquer coisa. Isso não é termo de consentimento”, diz Bruno.

E o procedimento no grupo Médicos Voluntários do Brasil não termina aí. Após assinar os documentos, é pedido que o interessado em receber tratamento precoce faça  um cadastro na plataforma Doctor8, com seu próprio termo de consentimento.

Além disso, a plataforma não conta com certificação do Sistema de Registro Eletrônico de Saúde (S-RES BIS), o que daria alguma garantia pública da segurança de dados da empresa, de acordo com Renato Sabbatini, professor da Unicamp e fundador da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde. Consultada, a Doctor8 não quis se manifestar sobre a reportagem.

Repórter faz uma consulta

Experimentei mandar meus dados e assinar todos os termos com um sintoma que eu estava sentindo no dia: tosse leve.

No mesmo dia em que fiz o cadastro, fui contactado por ligação de Whatsapp por uma pessoa que se identificou como voluntária do projeto e confirmou meu peso, idade e sintoma. A voluntária me alertou para ficar próximo ao telefone e aguardar uma ligação pois iriam me ajudar.

Poucas horas depois recebi uma ligação por WhatsApp de Jussara Locatelli, médica ginecologista de Santa Catarina. Ela perguntou se eu estava com tosse e se eu iria tomar os remédios mesmo. Caso contrário, ela “nem iria perder  tempo”. A médica me passou uma receita assinada digitalmente por e-mail e mandou uma mensagem me pedindo para fazer um exame.

Fazendo um rápido orçamento das receitas indicadas para uma tosse leve, sem nenhum outro sintoma, só de ivermectina daria um gasto de, no mínimo, R$ 65. Com as indicações de vitamina D, cloroquina, azitromicina e zinco a conta chegaria a R$150,00.

Jussara não quis dar esclarecimentos sobre a receita e qual a fundamentação para o protocolo, uma vez que não existe comprovação científica da eficácia para nenhum dos medicamentos indicados para Covid-19.

Não houve nenhum esclarecimento sobre a política de descarte ou posterior utilização dos meus dados coletados durante essa interação com o Médicos Voluntários do Brasil.

Tratamento de dados

Existem problemas sérios na forma como os dados da consulta e da receita foram coletados e tratados nessa interação. De acordo com Sabbatini, os dados de pacientes jamais poderiam ser coletados pelo Google Forms, já que o Google tem acesso irrestrito e secreto aos dados coletados via formulário.

Segundo ele, o formulário deveria estar seguro dentro de um Prontuário Eletrônico do Paciente, com criptografia de dados pessoais. Da maneira como é feito nos Médicos Voluntários do Brasil, qualquer um que conseguir acessar o endereço da planilha na nuvem consegue roubar os dados.

O estrago pode ser ainda maior se alguém roubar a senha ou o dispositivo móvel que o médico ou operador usa para acessar a planilha. Nesse caso, o ladrão “consegue facilmente todos os dados de uma vez só”.

“É necessário consentimento livre e esclarecido por parte do paciente (registrado e por escrito, no prontuário) sem o qual os dados não podem ser coletados e tratados. E o paciente precisa saber quem vai usar os dados, para que, como e onde, e qual é a política de apagamento dos dados uma vez não sejam mais necessários (respeitando o disposto no Código de Ética Médica)”, completa Sabbatini.

Sem isso, o guardião dos dados, ou o médico (operador) ou o controlador (nesse caso, os Médicos Voluntários ou o Doctor8) pode responder por qualquer violação, mesmo com o consentimento.

Como fizemos isso

O repórter acompanhou grupos de médicos e pessoas que se passam por especialistas em saúde no Telegram. Ele encontrou e entrou nesses grupos pesquisando por palavras como cloroquina, ivermectina, tratamento precoce e tratamento preventivo. A partir dessa pesquisa, ele entrou nos grupos e conseguiu inclusive uma “consulta”, com direito a receita médica e pedido de exame.

Alguns links para grupos e formulários podem ter sido omitidos de propósito para evitar espalhar práticas e informações sem respaldo científico.

Victor Silva

Freelancer no Núcleo // jornalista investigativo, falo de saúde, treta, trabalho precário, tratamento precoce, entregadores, extrema direita

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